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A carta filme de Manoel De Oliveira

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Inspirado livremente no romance de Mme. De La Fayette

 «A Princesa de Clèves»

 

Mademoiselle de Chartres teve um primeiro desgosto de amor: foi abandonada por um jovem que desejava manter com ela uma relação bastante livre.

Uma noite, uma amiga de sua mãe, a Mme. Silva, esposa do Director da Fundação Gulbenkian, apresenta-a a um médico de grande reputação, Jacques de Clèves. Este apaixonara-se pela jovem ao vê-la escolher um colar acompanhada pela mãe, numa famosa ourivesaria da Praça Vendôme. A jovem aceita casar com ele, sem no entanto sentir qualquer paixão.

Esta paixão vai ter como alvo um jovem cantor da moda, Pedro Abrunhosa. Apercebendo-se que este amor está a desabrochar, Mme. de Chartres, pouco tempo antes de morrer, avisa a filha e aconselha-a a ser prudente.

A jovem, deseja ser fiel e digna da confiança que o seu marido tem nela. Agora sem o apoio da mãe, vai regularmente visitar uma amiga da escola que vive num convento em Paris.

Cada vez mais pressionada pelos seus sentimentos por Pedro Abrunhosa, que tenta fazê-la viver esta paixão, Mme. de Clèves decide confiar o segredo do seu amor ao seu marido para que este a ajude no dilema. Mas o marido, que confirma assim aquilo de que desconfiava, fica desesperado e morre pouco tempo depois.

Viúva, Mme. de Clèves não casará com o cantor: perdeu uma vez no jogo do amor e tem medo de perder novamente junto de um homem tão cortejado pelas mulheres.

Sem dizer nada a ninguém, Mme. de Clèves desaparece.

A sua amiga religiosa recebe um dia uma carta de África: a Mme. de Clèves partiu com um grupo de missionários, foi socorrer as populações martirizadas pela guerra civil, a doença e a fome. 
O filme A CARTA é uma transposição inspirada no romance do século XVII, La Princesse de Clèves, de Madame de La Fayette, e recriada nos dias de hoje. Mantendo o mesmo pundonor da personagem principal, que na versão A CARTA é simplesmente a senhora de Clèves, uma vez que a acção já não é entre príncipes, mas num meio de alta sociedade dos dias de hoje.

A história desta princesa, evidencia um coração, que logo se sente invulgar, e que por tão verdadeiro se faz ainda mais fascinante e enriquecedor do drama e personagens.

Tinha lido o romance por sugestão de Jacques Parsi, filmava eu, por essa altura, o segundo filme da tetralogia dos amores frustrados, de que Jacques Parsi, a meu convite, fez a tradução dos monólogos e diálogos do filme e, posteriormente, do livro AMOR DE PERDIÇÃO, para francês, livro que foi publicado com sucesso, em França.

Ficou-me, desde então, a ideia de transpor para o cinema essa bela história, onde o contraste das posições amorosas choca com uma ética que as torna violentas. O produtor Paulo Branco conhecia este meu desejo e achou que o momento era oportuno para a sua realização.

Logo pressenti as dificuldades de repor a história na época em que Madame de la Fayette a tinha escrito e, ao mesmo tempo, pensei que, sendo um drama de fortes contrastes, recriando este conflito e fazendo-o reviver na actualidade, as situações dramáticas ganhariam ainda maior contraste numa sociedade tão permissiva nos amores como é a de hoje. E  a ética que controla e contraria estes amores, sendo anacrónica, mais interessante se me afigurou acentuá-lo, trazendo para a paixão da senhora de Clèves um cantor pop, e pôr uma Freira, amiga de infância, como sua confidente.

Subsequentemente, senti ainda o irresistível impulso de acompanhar esta triste história passional e íntima, com parcelas duma visão social que nos mostrasse o desconcerto que abala hoje, com igual força às das crueldades do passado, este nosso incorrigível mundo.

Manoel de Oliveira

 

Será que ainda me resta algum tempo contigo, ou já te levam balas de um qualquer inimigo,

Será que soube dar-te tudo o que querias, ou deixei-me morrer lento, no lento morrer dos dias.

Será que fiz tudo que podia fazer, ou fui mais um cobarde, não quis ver sofrer.

Será que lá longe ainda o céu é azul, ou já o negro cinzento confunde Norte com Sul.

Será que a tua pele ainda é macia, ou é a mão que me treme, sem ardor nem magia.

Será que ainda te posso valer, ou já a noite descobre a dor que encobre o prazer.

Será que é de febre este fogo, este grito cruel que da lebre faz lobo.

Será que amanhã ainda existe para ti ou ao ver-te nos olhos te beijei e morri.

Será que lá fora os carros passam ainda, ou as estrelas caíram e qualquer sorte é bem vinda

Será que a cidade ainda está como dantes ou cantam fantasmas e bailam gigantes.

Será que o sol se põe ao lado do mar, ou a luz que me agarra é a sombra do luar.

Será que as casas cantam e as pedras do chão, ou calou-se a montanha, rendeu-se o vulcão.

Será que sabes que hoje é Domingo, ou os dias não passam, são anjos caindo.

Será que me consegues ouvir ou o tempo que pedes quando tentas sorrir.

Será que sabes que te trago na voz, que o teu mundo é o meu mundo e foi feito por nós.

Será que te lembras da cor do olhar quando juntos a noite não quer acabar.

Será que sentes esta mão que te agarra que te prende com a força do mar contra a barra.

Será que consegues ouvir-me dizer que te amo tanto quanto noutro dia qualquer.

Eu sei que tu estarás sempre por mim.

Não há noite sem dia, nem dia sem fim.

Eu sei que me queres, e me amas também me desejas agora como nunca ninguém.

Não partas então, não me deixes sozinho

Vou beijar o teu chão e chorar o caminho.

Será, será, será!

 “SERÁ”, Pedro Abrunhosa

 

          

 

PEDRO ABRUNHOSA EM ENTREVISTA

 

É muito diferente fazer cinema e fazer música?

É um processo completamente diferente. Eu senti-me francamente bem porque estava nas mãos do mestre, do Manoel de Oliveira e ele tem uma visão global desde o ponto zero da realização dos seus filmes. Não fui mais que um grão de areia numa grande praia, praia essa que já estava claríssima na cabeça do Manoel. Ao longo de todo o processo de realização do filme eu fui estranhando algumas situações, como é evidente, porque sou músico e não actor. Mas fiquei surpreendido com o resultado final. O filme é, de facto, belíssimo. É um filme que produz um olhar irónico, sobre muitas coisas, nomeadamente a minha própria pessoa.

 

Viu o Pedro Abrunhosa naquele filme?

Esse é um dos pontos do filme. Aquele é o Pedro Abrunhosa através dos olhos do Manoel de Oliveira e portanto, para mim, é um pouco auto-irónico e também auto-flagelante, mas no bom sentido. Quando nós perdemos a capacidade de auto-ironizarmos, estamos a envelhecer e isso não é claramente o caso do Manoel de Oliveira.

 

Não posso deixar de lhe fazer uma pergunta sobre o contraste que há entre a adrenalina de um concerto, as noites, as viagens e o que é fazer um filme com o Manoel.

É uma experiência diferente, porque eu estou habituado ao estúdio, o que é um processo criativo um pouco “esquizofrénico”. Ou seja, encerramo-nos dentro de um estúdio e estamos durante um ano a produzir um disco, a repetir, a melhorar takes. E o cinema tem essa vertente também. Há uma equipa por trás que faz um trabalho fantástico que as pessoas ignoram. Eu creio que também é graças a essa equipa que o filme acaba por ser galardoado. Há uma adrenalina muito grande. São dois hemisférios que se tocam, aparentemente opostos:  o universo  da música pop, o meu universo, esse universo um pouco selvagem, um pouco dionisíaco. E o universo mais contemplativo, mais apolíneo, aparente, dos filmes do Manoel de Oliveira - porque o Manoel de Oliveira tem sempre um lado selvagem, um lado de humor cáustico e este filme tem um humor cáustico, extremamente penetrante. É um filme muito arrojado, porque simultaneamente o Manoel consegue pôr ao mesmo nível, sem caricaturar qualquer

um dos universos, o universo da música pop e o da música clássica, uma vez que a Maria João Pires - e é uma coisa que tem sido pouco referida - também entra neste filme.

 

Já percebi que o Pedro descobriu um pouco do Manoel de Oliveira. Era inevitável que assim fosse. Era adepto do Manoel de Oliveira.

Quando ele me telefonou eu tive de fazer um rewind para ver: “que filme é que eu tenho que ver para estar a par da sua obra” e faltavam-me um ou dois. Eu lembro-me de levar os Bandemónio há seis, sete anos atrás a ver o VALE ABRAÃO, filme que se tornou filme de culto para mim e já vi 4 ou 5 vezes. É um dos filmes mais belos do cinema.

 

Disse-me há pouco que viveu momentos de estranheza. O que é que mais aprendeu, o que é que tira desta experiência?

Aprender é a palavra certa. As experiências são todas benéficas enquanto se aprende. Eu aprendi muita coisa neste filme e aprendi sobretudo sobre relações humanas, além de conhecer pessoas fantásticas. O Manoel eu não conhecia pessoalmente, portanto foi uma surpresa. Digamos que o génio cinematográfico corresponde a um grande ser humano. A Leonor Silveira, por exemplo, com a qual eu não contracenei mas que tive o prazer de conhecer, é aquela pessoa luminosa na tela e fora dela. E a Chiara Mastroianni: contracenar com ela foi uma experiência algo dura porque ela é uma veterana e eu sou um novato, e espero continuar a sê-lo.

Aprendi sobretudo muito sobre como dirigir, como dirigir as próprias ideias, no sentido de que as pessoas as entendam. Eu estou habituado a dirigir o meu grupo, a minha própria produção, a dirigir no palco todos os pormenores. Já não estava habituado a ser dirigido. E esse é um retorno às minhas origens sobre a mão lúcida, tenaz e extremamente eficaz do Manoel de Oliveira.

 

Esta foi uma passagem fugaz (pelo cinema), sem tirar os óculos, ou é para voltar?

Eu creio que vai ser muito difícil voltar. Depois de filmar com o Manoel de Oliveira que realizador resta para ser filmado?

Entrevista ao Jornal da Tarde - RTP 1, 24.05.99

 

Entrevista de Manoel de Oliveira sobre o papel de Pedro Abrunhos

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